Nada a Fazer

Os pingos da chuva açoitavam a lona da barraca em ritmo incansável. A luminosidade
opaca do dia pouco permitia ver o que acontecia do lado de fora. Eliseu consultou seu
velho relógio digital. Passava das sete horas. Acabara o descanso. Ainda dentro da
barraca, enrolou suas cobertas e as acondicionou em sacos plásticos, depois saiu e
iniciou o desmonte. Finalizada a tarefa, olhou para o posto de combustível do outro
lado da rua. Sua bicicleta ainda estava no mesmo lugar. Na noite anterior a deixara
presa a um poste por uma grossa corrente e um cadeado

Sem nenhuma pressa procurou em seus guardados a escova de dentes e o creme
dental, depois atravessou a rua para usar bica do lava-jato existente dentro do posto de
combustível. Após terminar sua higiene bucal, meteu a cabeça em baixo do jato de
água e deixou que seus dreadlocks se molhassem. Sacudiu a cabeça para escorrer a
água e voltou para a calçada empurrando a bicicleta. Em poucos minutos levantou
acampamento, colocando no bagageiro da bicicleta todos os seus pertences.

Maria Cecília se equilibrava na ponta dos pés tentando enxergar um taxi no
emaranhado de carros que deslizavam pela Rua Visconde de Pirajá. Há pouco mais de
uma hora havia saído de sua casa no Alto Leblon para fazer uma mamografia. Ao
chegar ao laboratório, descobriu que a máquina estava quebrada, mas que poderia
fazer o exame na filial de Botafogo. Ela conseguiu que um taxi a levasse ao local.
Depois de realizar o exame consultou seu relógio. Estava atrasada para sua aula de
Pilates. Caminhou apressada pela Rua General Polidoro em direção a Rua da
Passagem onde imaginou que seria mais fácil conseguir um taxi que a levasse de volta
ao Leblon.

Enquanto seguia pela calçada, disputava espaço com algumas bicicletas que fugiam da
ciclovia e teimavam em assustar os pedestres. Maria Cecília lembrou-se do tempo em
que morou em Paris para onde foi depois de uma longa temporada em Vancouver,
Londres e Barcelona, sempre acompanhando Beto no exercício de diversos cargos nas
empresas da família dele.

Conheceram-se na faculdade de economia onde ela entrara pensando em um dia ir
trabalhar no Banco Mundial. Queria ser uma cidadã do mundo. Estava sentada no
fundo da sala quando Beto entrou com seu cabelo louro e profundos olhos verdes. Foi
paixão ao primeiro olhar.

A vida no Canadá era muito cansativa. Em pouco tempo, Beto assumiu a diretoria de
distribuição com a missão de criar uma nova logística para colocar a cerveja em cada
canto do país. Ela fazia estudos para acompanhar os hábitos de consumo da
população local. Após longos seis anos, os dois foram para Chicago cursar um MBA.
Depois do curso foram para a Europa. À medida que Beto recebia maiores
responsabilidades nas empresas da família, eles se distanciavam. Ela queria filhos e
sentia saudades da mãe. Aos poucos a situação ficou insustentável e o amor acabou.

Com a cabeça tomada pelas recordações, Maria Cecília avistou um taxi parando a
poucos metros para deixar passageiros. Decidida a não perdê-lo acelerou os passos
atravessando a rua sem olhar para trás. Estava no meio da rua quando o barulho de
uma freada violenta lhe paralisou. Olhou para trás e se deparou com um caminhão de
lixo deslizando em sua direção. Seu coração acelerou e ela levantou os braços para
proteger o rosto na vã tentativa de escapar da tragédia.

Eliseu encostou sua bicicleta ao lado da porta da padaria e foi tomar seu desjejum. O
cheiro forte do café lhe remeteu ao tempo em que tinha uma casa e uma família. Tivera
uma boa educação, cursara uma boa faculdade, mas as más companhias e a
perspectiva do dinheiro fácil o levaram para o mundo do crime. Começou pegando
pequenas quantidades de cocaína para vender nas festinhas da faculdade. Em pouco
tempo era o traficante preferido dos playboys da zona sul.

Durou pouco a iniciativa de Eliseu. As facções do crime ficaram sabendo de um cara
que ameaçava tomar conta da distribuição de drogas no Rio de Janeiro e armaram
para que a polícia o pegasse em flagrante. Ele foi preso ao receber um carregamento
de uma tonelada de pasta de cocaína. Perdeu tudo. A justiça lhe tomou todos os bens
que havia comprado com o dinheiro do tráfico. Pagou advogados para conseguir uma
pena menor e ficou sem um tostão no bolso. No presídio ficou isolado. Todas as três
fações queriam sua cabeça. Foram oito anos até sair na condicional.

Eliseu acabou de comer o pão e tomou o último gole de café. Colocou a xicara no
balcão e se despediu da atendente. Preparava-se para partir quando foi interrompido
por uma freada brusca. A poucos metros, um caminhão de lixo ia ao encontro de uma
mulher. Gritos para que ela saísse da rua foram ouvidos, mas parecia que o medo a
deixara sem reação.

Foi automático. Eliseu largou a bicicleta e se lançou pegando a moça pela cintura e
caindo com ela a centímetros da sarjeta. Os pneus passaram rentes a sua cabeça e
suas narinas foram invadidas pelo o cheiro forte de borracha fritando no asfalto. O
caminhão parou a poucos metros deles e varias pessoas correram em seu socorro.
Tremendo muito, a moça custou a se levantar. Alguém a levou para a calçada e uma
cadeira apareceu trazida de algum lugar. Ela sentou-se e bebeu um copo de água que
se materializou na sua frente. Eliseu saiu discretamente, levantou sua bicicleta, montou
e seguiu pela Rua da Passagem em direção ao Túnel Novo em busca de seu sustento
diário.

Maria Cecília bebeu a água que lhe deram em pequenos goles. Suas mãos tremiam
sem parar e a respiração ofegante demorou em se recompor. Olhou para todos em sua
volta e não reconheceu seu salvador.

– Onde está o rapaz que me salvou?

A resposta foi sufocada pelos estampidos de três tiros. Todos que estavam à volta de
Maria Cecilia se voltaram para rua tentando entender o que havia ocorrido. A poucos
metros dali o corpo de Eliseu sangrava no asfalto molhado. Em segundos Maria Cecilia
chegou a seu lado, mas não havia mais nada a fazer. O anjo que salvara sua vida tinha
voltado ao céu.

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