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Ciladas Primeiro Capítulo

I

“Faustina, corre aqui depressa

Olha quem está no portão

É minha sogra com as malas

Ela vem decidida a morar no porão.”

(Salvador Mole / José Mazzitelli)

Não sei quando isso começou. Acho que foi de repente. Um desses pensamentos que nos ocorrem quando a mente divaga pelo vazio. Não aguentava mais a minha sogra e desejei me ver livre dela.

Naquele dia eu a levei ao médico. Enquanto esperava a consulta, torcia para que o doutor abrisse a porta do consultório e me desse a notícia, compungido:

— Lamento, mas sua sogra não tem muito tempo de vida.

Não dava mais para suportar. Traste, zé goiaba, sovina, frouxo, safado: eram esses alguns dos adjetivos com que Zuleide me dirigia a palavra. Reconheço que muitos me acham fraco, sem iniciativa — também, quem toleraria uma megera debaixo do mesmo teto por tanto tempo, mesmo sendo xingado por ela, sem reagir? — e isso é bom para o que iria fazer. Não levantaria suspeitas. Quando a polícia questionar os parentes, responderão expressando surpresa:

— Quem? Ele? Mariozinho é incapaz de matar uma mosca! Jamais mataria a sogra!

Saímos do consultório médico, na Rua das Laranjeiras, para a calçada apinhada de gente. Caminhamos até o Largo do Machado. Eu seguia mudo ao lado da velha. Passou pela minha cabeça que um carro desgovernado poderia avançar o sinal de trânsito, subir a calçada e mandar a desgraçada para o inferno. A culpa me invadiu ao imaginar que inocentes poderiam morrer junto, ou pior, ela poderia sobreviver.

— Precisamos passar na farmácia — disse a jararaca, me arrancando de meus devaneios. — Doutor Márcio disse que tenho que iniciar o tratamento ainda hoje — resmungou.

Não respondi. Mudo estava, mudo continuei. Caraca. Tanta gente velha fica com Alzheimer… E essa desgraçada cada dia mais lúcida, perturbando a minha vida. Hoje pela manhã, antes de sair, encrencou com Marilza só porque o café estava frio. Brigou com Pedro Henrique porque ele não arruma trabalho. Meu cunhado, com quarenta anos, pensa que ainda tem dezoito. O escritório dele é na praia e seu computador é uma prancha de surfe. Desde que a praga da Zuleide foi morar lá em casa que não tenho sossego.

Minha sogra tem posses. O marido lhe deixou uma gorda pensão. Ela possui muitos apartamentos alugados em Copacabana, Botafogo, Flamengo e Largo do Machado. Morava sozinha, tinha empregada, era despachada. Não precisava de ninguém. Um dia chegou lá em casa, jogou sua bunda flácida no meu sofá e se lamuriou com Marilza:

— Não aguento mais aquele apartamento vazio. Pedro Henrique passa o dia na praia e fico sozinha com a empregada, conversando com as paredes.

O fato é que meu cunhado nunca gostou da mãe. Sempre mandona, querendo controlar os passos de todo mundo. Marilza socorreu o irmão. Ofereceu o quarto que eu usava para trabalhar em alguns projetos pessoais para que Zuleide pudesse passar um tempo conosco. Perdi meu escritório. Os dias se transformaram em meses. Percebendo que aquilo não teria volta, comecei a ficar puto com a megera. Algum tempo depois meu cunhado se juntou a ela, indo morar no antigo quarto de empregada. Alegou que morávamos mais perto da praia.

Passamos na farmácia para comprar os remédios. Saíamos do estabelecimento quando uma senhora de vestido floral esbarrou na minha sogra. Zuleide se desequilibrou. Para não se estatelar no meio da loja, tentou se amparar nas prateleiras repletas de creme dental. Seu peso jogou dezenas de caixas no chão, provocando um barulho dos infernos. Consegui ampará-la antes que caísse e fizesse um estrago maior. Tem coisas que faço e não sei bem o porquê. Deveria ter deixado a bruaca se espatifar no mármore frio. Ela tinha de começar a se acostumar com aquele tipo de pedra, pois em breve seu corpo iria se decompor embaixo de uma delas.

Superado o incidente, nos dirigimos ao Largo do Machado. Esperamos o sinal de trânsito em frente à Igreja de Nossa Senhora de Lourdes fechar para podermos atravessar e seguir rumo à estação do metrô. Quando o sinal passou para o vermelho, apressei a velha:

— Vamos logo, minha sogra, ainda tenho que ir trabalhar.

— Você sempre diz isso. Não pode falar para eles que me levou ao médico?

— Minha sogra, eles não me dispensam nem para cuidar dos meus filhos, quanto mais da senhora.

— Seus filhos já estão adultos.

Avancei pela faixa de pedestres, deixando Zuleide para trás. Ainda não havia alcançado o outro lado da rua, quando o ronco de um motor se esgoelando avizinhou. Virei para trás num repente. Paralisada como uma estátua de sal, minha sogra parecia querer parar o carro que se aproximava com a força do pensamento. Me contive para não pular de alegria. O barulho dos pneus arrastando-se pelo asfalto denunciava a tentativa desesperada do motorista em frear o veículo. O cheiro da borracha queimada chegou às minhas narinas, me provocando náuseas. As pessoas corriam desesperadas para fugir do acidente iminente. Imóvel, vi o bólido se aproximando da coisa ruim para parti-la em mil pedaços. Isso me deixou em transe, quase em euforia.

Uma mulher saída dos quintos do inferno puxou minha sogra pelo braço, impedindo o atropelamento. Voltei para ver seu estado. As pessoas em volta perguntavam se estava bem e gesticulavam para um policial, apontando o automóvel sobre a faixa de pedestres. A sonsa fingia estar abalada e aproveitava cada segundo de atenção dada por aqueles estranhos.

Fiquei algum tempo aguardando-a se recompor. Depois de muito insistir que iria me atrasar para o trabalho, a serpente concordou em levantar-se do banco improvisado pelo gerente da farmácia, para onde a levaram, e seguir nosso caminho. Descemos as escadas da estação do metrô do Largo do Machado com passos rápidos, fugindo do cheiro forte das flores do abricó de macaco que, nessa época do ano, se espalhavam pela cidade. Eram quase dez horas da manhã e eu torcia para que a estação estivesse vazia.

Em pouco tempo de espera o trem apontou no início da plataforma. Imóveis, esperávamos em companhia de outras pessoas. Foi então que me veio a brilhante ideia. Eu poderia esperar o trem se aproximar e dar um leve toque nas costas dela com meu ombro, o suficiente para deslocá-la, fazendo-a despencar sobre os trilhos. Seria um acidente perfeito.

Lembrei-me de minha mulher. Ela iria se desesperar, mas nossos problemas de grana acabariam quando o inventário da velha fosse concluído. Poderíamos fazer aquela viagem à Turquia e nosso passeio de balão sobrevoando a Capadócia. Tive medo de não conseguir conviver com o peso de sua morte.

Dane-se, pensei, tem hora que temos que decidir entre o céu e o inferno, e optei por me livrar daquele traste. Me posicionei atrás da cobra. O metrô foi se aproximando cada vez mais. Quando estava bem perto, me virei de repente e esbarrei nas costas da velha, jogando-a nos trilhos. Sou capaz de jurar que sorri nesse momento.

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Ciladas

PRÓLOGO

Eu sempre soube que minha estupidez terminaria daquele jeito, mas me deixei dominar pela escrotidão que de vez em quando ronda os seres humanos, despertando os seus instintos mais desprezíveis. Naquele momento eu só queria fugir e correr para os braços de Marilza, mas as pernas dormentes, presas àquele cativeiro, não me obedeceriam.

Lembrei-me de que era cristão e católico. Pedi a Deus uma saída em troca de meu arrependimento e muita caridade. Não sei por que me lembrei dos meus filhos e me senti um desnaturado por nunca os colocar em primeiro lugar. Talvez porque estivessem com a vida arrumada. Ambos formados, com bons empregos e mulheres lindas. Embora ainda vivêssemos no mesmo apartamento, nossos horários não combinavam. Estavam sempre saindo ou chegando de algum lugar ou partindo para alguma festa. Com tanta gente morando no mesmo apartamento, família de fato éramos apenas eu, Marilza e Zuleide e, mesmo assim, decidi matar minha sogra, talvez buscando mais solidão.

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Trégua – Primeiro Capítulo

Nunca mais se esqueceria daquele maldito dia.
Diante dos túmulos da mulher e da filha, Pedro não se assustou com o estrondo do
trovão anunciando a tempestade. Não arredaria o pé dali, mesmo que o mundo
acabasse. Faria companhia às suas amadas pela eternidade. O azul intenso do
céu foi tomado pelas nuvens negras carregadas de chuva que insistiam em
expulsá-lo do cemitério São João Baptista, mas Pedro teimava em desafiar o
tempo naquele fim de tarde, na cidade do Rio de Janeiro.
As imagens de santos, misturadas a anjos, protegiam os túmulos de mármore
escuro, iluminadas pelo clarão dos raios que prenunciavam a tempestade. Pela
segunda vez na semana comparecia àquele lugar. Antes presenciara o enterro de
sua filha Luna, agora o de sua amada mulher, Madalena. Ao lado do túmulo,
recebeu os últimos cumprimentos, enquanto os presentes faziam o sinal da cruz
diante da sepultura e, compungidos, se encaminhavam para a saída do cemitério,
fugindo dos primeiros pingos que anunciavam o temporal.
Pedro tirou os óculos escuros e esfregou os olhos vermelhos. Dois buracos
secos no rosto, depois de vazarem toda água gerada pela dor. Ouviu súplicas para
fugir da chuva que se avizinhava, mas suas pernas não obedeciam. Pesadas,
enraizadas na terra, prendiam-no ali. Braços esticados rente ao corpo, ombros
caídos, cabeça pendente aproximando o queixo do peito. Não tinha coragem para
abandonar aqueles túmulos. A saudade dos carinhos da mulher em seu rosto era
imensa. Nunca mais teria em seus braços a filha querida, o amor de sua vida.
A família eram os três. A mulher e a filha se foram em pouco tempo. Agora, o
sentimento dentro de seu peito se alongava como visgo de jaca, prolongando seu
sofrimento.
— Meu filho, você tem que vir comigo — sussurrou sua mãe.
— Ainda não — disse Pedro acolhendo-a num longo abraço. — Chegando em
casa, deite-se, procure descansar.
A velha senhora se desvencilhou do abraço com delicadeza. Tentou afastar o
filho do jazigo, puxando-o pela mão. Irredutível, ele não arredava os pés do local.
— Não saio daqui sem você — disse-lhe a mãe.
— Não posso… vá… Gabriel te levará para casa. Ele te espera na saída. Se
apresse para não se molhar.
— Como posso ir, te deixando nesse martírio?
Pedro passou as mãos trêmulas pelos cabelos desalinhados da mãe. Fitou o
rosto dela, marcado pelos anos de sofrimento.
— Mãe, por favor, vá para casa. Tome um chá e procure descansar. Mais tarde
falo com você.
A mãe de Pedro saiu arrastando as pernas em direção à saída do cemitério.
Sozinho, ruminou seus pensamentos.
Cerrou os olhos invocando poderes que não tinha, para que tudo se
desfizesse. Daria a vida se pudesse ter Madalena por alguns instantes em seus
braços, lhe acariciar os cabelos e beijar os lábios sempre vermelhos. Abraçaria
Luna, beijaria seu rosto sempre rosado e lhe diria que a amaria enquanto existisse
o sol e que se culparia pelo resto de sua vida por não tê-la protegido do monstro
que a tirou de seus braços.

Um raio riscou o céu cinzento, clareando as imagens que guardavam os velhos
jazigos, dando-lhes um aspecto fantasmagórico. Pouco tempo depois, uma forte
trovoada tirou Pedro de seu transe hipnótico. Ele ajoelhou-se diante dos túmulos,
abriu os braços, pousando as mãos nas lápides, na esperança de ultrapassar a
pedra fria e tocar pela última vez os corpos da mulher e da filha.
A chuva desabou forte e caudalosa, levando a camada de poeira e fuligem das
sepulturas em direção ao bueiro. Pedro não procurou abrigo. Os grossos pingos
caíram sobre seu corpo, encharcando suas roupas.
Uma mão forte o resgatou do transe.
Pedro levantou o rosto. Um sujeito o olhava com ar pesaroso, tentando
equilibrar o guarda-chuva.
— Você tem que sair daqui — disse o sujeito. — O cemitério está fechando. Não
há mais nada que possa fazer pelas duas.

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O Olhar Oblíquo do Medo – Capítulo I

O avião havia aterrissado a cerca de dez minutos no Aeroporto Santos Dumont, na Cidade do Rio de Janeiro. O voo, procedente de São Paulo, atrasou mais de meia hora em função do mau tempo, impedindo a decolagem no Aeroporto de Congonhas.

Túlio andava de um lado para outro em frente ao portão de desembarque massacrando um chiclete na boca. Receou que a pessoa que esperava tivesse desistido, impedindo a concretização das ações que lhe foram atribuídas. Quando os passageiros começaram a sair, os olhos treinados de Túlio procuraram o homem com a descrição que lhe passaram: altura mediana, entre vinte e cinco e trinta anos, branco, orelhas deformadas pelo arrasto no tatame e uma singular tatuagem de labaredas lhe subindo pelo pescoço.

Túlio não tardou a identificar o sujeito caminhando com passos decididos em direção à saída do aeroporto, talvez a procura de um taxi. Túlio jogou na lixeira o pedaço de papel toalha que usou para secar as mãos suadas e apressou os passos a fim de não perder o alvo de vista. Antes de chegar ao ponto de taxi, o alcançou. Decidido, tocou no ombro do homem fazendo com que ele se virasse em sua direção.

– Oi, tudo bem? – Túlio lhe abriu um sorriso.

– Quem é você? – a pergunta demonstrava mais cuidados do que curiosidade.

– Túlio. Trabalho para Fábio. Carniça me pediu para vir buscá-lo.

– Não foi esse o combinado. – disse o sujeito arqueando uma das sobrancelhas.

– Acontece que Waldomiro já está no hotel e tem que partir o mais rápido possível. Por isso Carniça me pediu para te buscar.

– E onde está o carro?

– No estacionamento. – disse Túlio apontando à esquerda.

O sujeito mordeu os lábios, transparecendo desconfiança ante aquela mudança de planos. Por fim começou a caminhar na direção apontada por Túlio, sendo seguido por ele.

Chegaram ao estacionamento onde Túlio apontou um Renault Megane de cor preta e apertou o segredo existente na chave do carro para destravar as portas.

– Coloque a sua mala no banco traseiro – disse.

Ele assumiu o volante tendo seu acompanhante sentado ao seu lado e saiu do estacionamento, seguindo em direção à zona sul. O Renault mergulhou por baixo das pistas do Aterro do Flamengo para fazer o contorno e pegar a pista no sentido Copacabana. A força centrifuga produzida durante a curva espremeu o sujeito na porta, obrigando-o a levar a mão esquerda ao painel para se equilibrar. Túlio manteve uma das mãos segurando o volante. Com a outra pegou debaixo de seu banco uma pistola com silenciador. Apontou de imediato para a cabeça do homem e apertou o gatilho uma única vez. O sangue jorrou do furo provocado pelo projétil desenhando uma borrasca vermelha na porta do carona. Túlio dirigiu mais alguns metros até encontrar um Renault Clio parado no acostamento com as luzes do alerta piscando. Parou o carro, pegou um pedaço de pano no banco traseiro e passou pelo volante. Precisava limpar todo e qualquer vestígio que pudesse deixar de sua presença. Saiu do carro e se dirigiu ao Clio. Abriu a porta dianteira e sentou-se ao lado do motorista sumindo no transito denso daquele principio de noite no Aterro do Flamengo.

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