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A sacola

Franzino, aparentando gastar as últimas forças que lhe restavam nos braços, o garoto arrastou a sacola até o alto da escadaria da igreja, sentou-se no último degrau e a colocou de lado. De onde estava, podia ver o rastro de sangue que havia deixado em sua caminhada. Mantinha uma de suas mãos fechada, apertando as notas pelo pagamento adiantado do serviço que foi obrigado a fazer. Algumas mulheres que desciam as escadas apressaram os passos ao verem o líquido vazando da bolsa.  Um sujeito branco, camiseta preta, bermuda caindo da cintura e tornozeleira eletrônica em uma das pernas se aproximou. Parou em frente ao garoto, evitando sujar seu tênis no sangue que escoava pelo degrau. Depois de olhar à sua volta, pegou a sacola, desceu as escadas e sumiu em direção ao beco. O garoto correu para um dos ambulantes em frente à igreja, pediu um cachorro-quente com bastante ketchup, sentou-se no meio-fio e comeu, admirando a pipa bailando no céu azulado.

Malandro é malandro

Júlia saiu do banco onde acabara de sacar quatrocentos reais. Na rua pouco movimentada, um sujeito passou correndo e deixou cair um pacote. Antes que pudesse ter alguma reação, uma mulher se abaixou, pegou o pacote e comentou que deveria ter uns mil reais. Depois, propôs que dividissem o dinheiro, mas deveria ser rápido pois o sujeito poderia voltar. Como não teriam tempo para contar a dinheiro, sugeriu que Júlia lhe entregasse o que tinha na carteira e ficasse com todo o valor do pacote. Júlia não titubeou. Abriu a bolsa, pegou um de seus cartões de visita e entregou para mulher pedindo para ligar, caso precisasse dos seus serviços.

A caçada

Estava de tocaia há dois dias. Foi Jesualdo quem disse que o bicho sempre aparecia naquele trecho de rio. Umas vezes ao cair da tarde; outras, no início da manhã. Quando o mato se agitou sem que o vento mandasse, senti que tinha chegado a hora. Apoiei a culatra no ombro, prendi a respiração, curvei o dedo no gatilho esperando o momento de liberar o chumbo para percorrer a distância e encontrar o alvo. A cabeça apareceu entre a folhagem e a mira do rifle se encarregou de aproximar nossos olhos. Foi nesse instante que a minha alma se desprendeu de meu corpo. Quando voltei a me cobrir com minha pele, o medo havia partido e o desejo de morte se dissipado.

A tradição

Acordou pela manhã com a notícia da morte da cunhada. Por alguma razão que desconhecia era a primeira a ser informada sempre que alguém partia desta para melhor. Perguntou onde seria o velório e a que horas seria o enterro. Anotou as informações no celular e se arrastou para o banheiro. Tomou banho, penteou os cabelos, escovou os dentes, sempre buscando o início daquela tradição. Acho que foi mãe quem começou com isso. Ela sempre dizia que eu era equilibrada. Coitada. Se fosse verdade, não teria acabado com tudo em três meses. Equilíbrio deveria ser vendido em farmácia, entre sabonetes, creme dental, remédio para gases, que nem confiança. Não adianta, depois que a gente perde um dos dois é como uma peça colada. Tá inteira, mas tá quebrada.

Paletó e Zé da Bota

Quando Tárcio chegou na casa de Paletó com uma sacola plástica contendo suas poucas roupas, o velho não disse nada. Não houve abraços, perguntas. Apenas que havia comida nas panelas, se estivesse com fome. Depois sumiu. Voltou horas depois carregando uma esteira feita de junco. Não havia camas no quarto em que morava. O pai era de pouca ou nenhuma conversa. Ouvia mais do que falava, mesmo quando seu amigo Zé das Botas chegava para lhe fazer uma visita e danava a contar os entreveros que tivera com quem havia lhe procurado para trocar um salto, colocar meia-sola em um sapato velho, colar uma tira de sandália. Paletó sorria. Passava a mão pelos longos cabelos grisalhos e, às vezes, brincava com a caixa de fósforo que carregava no bolso da camisa, mesmo depois de abandonar o vício do cigarro. Ao comentário de que deveria procurar uma companheira, retrucava que não daria uma madrasta para seus filhos, fingia uma solidão que não existia.

Suspensão

Tiago sentou-se em sua cadeira e mexeu em alguns papéis. Sua caixa de correio avisou que havia uma mensagem nova. Abriu o e-mail e leu seu conteúdo sem se distrair com outros afazeres. Clicou nas imagens anexadas e foi passando uma a uma, devagar. Depois, fechou o e-mail e ficou olhando para o monitor à sua frente, demonstrando estar ausente daquele lugar. Deixando sua mente desgarrada de seu corpo se perder entre hipóteses.

Oportunidade

Dizem que milagres acontecem. Nunca acreditei. Meu problema começou com algumas dores pelo corpo que foram se acentuando. Alguns meses depois não conseguia mais mexer as pernas, os braços. Então veio a revolta. Depois, liguei o foda-se e aceitei o que a sorte me garantiu. Agora, estou prestes a fazer o que todos queriam que eu fizesse, mas nunca tiveram coragem de pedir.

Tragédia Suburbana

Acordei no meio da madrugada com as vozes de mãe e filha discutindo. Era sempre assim. A filha saía para a balada. A mãe ficava em casa tomando umas cervejas. Quando as duas voltavam a se encontrar, as mágoas represadas durante os dias afloravam. No inicio me preocupava com o desfecho que aquelas brigas poderiam ter, mas me acostumei a voltar a dormir. Soube do acontecido quando saí na varanda e vi um carro de polícia ilhado pela multidão.

Suspeitos

Sexta-feira, quase meia-noite. Desci do ônibus na Leopoldina com meu dinheiro escondido nas meias. Com passadas rápidas, caminhei em direção à Rodoviária. Mesmo com pouca luminosidade na rua, percebi dois homens caminhando rente ao canal em minha direção. Atravessaram para a minha calçada. Atravessei para o outro lado. Voltaram para a calçada do canal. A menos de trinta metros de nosso encontro, me arrisquei entre os carros. Atravessei a rua correndo. Distante, parei para recuperar o fôlego. Olhei para trás. Não havia ninguém.