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Cobrança

Naquele momento, um beijo com a língua dele tocando o céu de sua boca, despertando lembranças, provocando alucinações, seria tudo de bom. Mas como esquecer a tragédia de seis meses atrás? Como apagar as consequências dos atos, ou seriam pecados, de todos os envolvidos? Antes de tudo acontecer, era naqueles braços inquietos e sem noção que gostava de ser acolhida. Aquilo tudo foi um erro, os dois erraram, os três erraram muito. Sempre foi tão lúcida, tão resolvida. Em que ponto da vida se perdeu e se envolveu naquele desastre? Agora, estava claro: não fora a culpada, se é que havia alguma culpa, e existindo, tivesse algum dono. Se restava alguma cobrança a ser feita, fizessem ao destino, não a ela; era inocente desde sempre.

O açude

Até hoje Damiana não sabe se Januário ouviu seu grito. Seu peito ficou apertado, esperando o marido surgir em algum ponto do açude. A demora se transformou em desespero. Ela correu de um lado para outro, as mãos na cabeça, suplicando ajuda. Seus gritos saiam de sua garganta, corriam por entre os galhos tortos da caatinga e voltavam solitários. Da cabeça, as mãos passaram a segurar o ventre e as águas límpidas do açude ficaram rubras.

Alucinação

Acordei atrasado. Havia planejado estar na Floresta da Tijuca às oito. Peguei o celular. Nove horas. Abri a janela. Tempo nublado, a floresta encoberta por uma imensa cortina de chuva. Me troquei, peguei o carro. Nada me impediria de entrar em uma das trilhas da floresta naquele dia. Comecei a caminhada em torno das dez. O Parque estava deserto. Uma névoa esbranquiçada se metia entre as árvores enquanto a chuva fina escorria sobre meu abrigo. Quando entrei em uma das trilhas, percebi que era o primeiro, naquele dia. Não havia marcas de pés no chão úmido e nem galhos quebrados. A chuva persistia e as árvores eram tragadas pela névoa. Mantive o ritmo acelerado. Pouco depois escutei um barulho na mata. As folhas que cobriam a trilha pareciam estar sendo pisoteadas por passos velozes, atrás de mim. Agucei os ouvidos na expectativa de identificar vozes. Silêncio. Naquele trecho, a mata fechada parecia me engolir. Decidi voltar. Comecei a correr furando a névoa, sentido a chuva açoitar meu rosto. Os passos que ouvi me perseguindo, agora fugiam à minha frente. Ouvi galhos sendo quebrados, pés descarregando o peso do corpo e esparramando água pela trilha. Aumentei a velocidade. Senti que a qualquer curva da trilha avistaria o sujeito que tentou me assustar. Quando cheguei ao asfalto, não havia ninguém. O barulho na mata cessou. Apenas o coração bombeava meu sangue prestes à exaustão.

Repetições

Acordei. Corpo suado, ofegante, trêmula, deitada no meio da rua, blusa rasgada, noite escura. Lembrei-me do cachorro. Seus latidos me fizeram levantar. Corri, descendo uma viela com o som cada vez mais perto. O sinal vermelho piscava para uma rua vazia, um gigante caolho mirando o infinito. Os latidos estavam mais próximos, dava para ouvir o animal arfando. Entrei em uma rua estreita e me deparei com o muro. A sombra do cão foi projetada na parede. Me virei a tempo de afastar seus caninos do meu pescoço. Acordei. Meus pés encharcados faziam um barulho engraçado quando os movimentava sobre o convés alagado do navio. Pessoas se esgueiravam entre as passagens carregando coletes salva-vidas, havia gritos de crianças e mulheres histéricas. Homens covardes se arremessavam aos botes diante de idosos aflitos. O navio adernava para a direita, os barcos tentavam fugir do rodamoinho. Sozinho na cabine, o comandante assistia a tudo fazendo continência para Netuno. O último bote caiu na água e não consegui embarcar. Me segurei nas grades tentando fugir das águas geladas. Uma onda mais forte me arrastou pelo convés. Bati com a cabeça em um móvel que flutuava à deriva. Meu sangue se misturava ao azul das águas. Apenas uma parte do navio ainda lutava contra seu destino. Sem alternativas, me lancei ao mar. Acordei.

Segunda voz

Você está no banheiro, chuveiro aberto, água escorrendo pelo rosto. Tem que chamar alguém para colar o carpete da sala, comprar material de limpeza, tirar dinheiro para pagar a faxineira.  Você ouve gritos, fecha a torneira. O grito se repete. Se enrola na toalha, sai do banheiro espalhando gotículas de água pelo quarto. Novo grito, mais forte. Chega na sala e vê a porta da varanda aberta. Você corre ao encontro da voz, tropeça na ponta solta do carpete e cai de rosto no chão enquanto ouve o pedido de socorro se distanciando.

Desafiando o perigo

O cheiro era doce, suave. O creme amarelo brilhava sob a luz que entrava espremida entre as tiras da cortina. De onde me abrigava, parecia tentador. Mas a distância era longa e o risco de morte tinha o som de um sininho badalando no meu ouvido. O bom-senso me indicava o caminho de casa, mas de que vale a vida se fazemos sempre o que é o mais adequado? Cadê o prazer, a emoção, as histórias que contaremos depois e que incentivarão outros aventureiros? Ah, dane-se o perigo! Saí do meu esconderijo com os olhos fixos na iguaria, a saliva escorrendo pela boca aberta, as pernas em frenesi e o desejo de abocanhar aquele mísero pedaço de pão eletrizando meu corpo. Estava tão perto que nem percebi quando a sola da sandália me esmagou contra o piso.

Incertezas

Ela consultou o relógio. Faltavam vinte minutos para a meia-noite. Depois de parar na penúltima estação, restaram apenas duas pessoas no vagão: ela e um sujeito coberto por casaco de aviador. Os dois separados por uma infinidade de bancos vazios. A noticia de que ocorria assaltos durante a noite dentro do metrô lhe voltou à memória. Apertou com força a bolsa sobre o peito até sentir o seio doendo. Ainda estavam entre as duas estações quando ele se levantou e caminhou a seu encontro. O coração aumentou o ritmo das batidas, as mãos tremeram, a boca secou. Ele se posicionou em frente a porta, meteu uma das mãos no bolso do casaco e esquadrinhou em volta, talvez a procura de algum passageiro invisível. Ela se apertou no fundo do banco. O trem entrou na estação. Ele tirou a mão do bolso, abriu um sorriso e disse boa noite. A porta se abriu e os dois caminharam lado a lado na plataforma vazia.

A mensagem

Recebi a mensagem no celular. Tinham acabado de realizar uma compra com meu cartão de crédito. Eu deveria entrar em contato, caso desconhecesse a compra. Liguei, sendo atendido por uma voz feminina aveludada. Senhor, nossa área de fraudes identificou esse lançamento no seu cartão e vamos estornar. Para isso preciso do seu CPF e data de nascimento. Disse que não me lembrava do número e nem do dia de meu aniversário. Senhor, todo mundo lembra do CPF e ninguém esquece de seu aniversário. Achei a voz dela um pouco alterada, mas respondi que minha memória não estava boa e que a única coisa que não me esquecia era do salário que seria depositado naquele dia. Ela me alertou sobre o grande perigo de terem clonado a minha conta e que precisava do número do meu cartão e da senha para bloquear saques fraudulentos. Sem saber o que fazer, desliguei o telefone. Eu nem tenho cartão de crédito.

Sete crianças

Juvenal entrou na cozinha improvisada dentro da obra. Pegou um pedaço de pão com margarina, encheu uma caneca de café pela metade e sentou-se longe de todos. Conhecido como Galego, devido aos olhos verdes e o cabelo louro, Tibério viera da mesma cidade de Juvenal. Há semanas começara a espalhar um boato: havia namorado a mulher do conterrâneo quando ainda moravam em Santa Quitéria, no interior do Ceará, e não via a hora de estar com ela de novo. À noite, Juvenal questionou sua mulher que o mandou deixar de ser besta e não trazer conversa de doido para dentro de casa. Enquanto Juvenal tomava banho, ela prometia que seria a última vez que Tibério abria a boca para se gabar.

O flagra

Domingo de sol na praia de Ipanema. Jorge corria de um lado para o outro, tirando e botando carros nas vagas de estacionamento. Passava das onze da manhã quando atendeu ao chamado de Ângela, dona do quiosque onde fazia suas refeições e com quem dividia os lençóis sempre que possível. Os dois trocavam carinhos quando foram surpreendidos com a chegada de Shayenne. Acuado, Jorge tentou se explicar. Disse para uma que era passado e para a outra, não haver futuro. As duas mulheres avançaram sobre o malandro com dedos em ristes e palavras pouco amigáveis. Sem conseguir reverter a situação, Jorge misturou-se aos banhistas e foi se esconder entre os veículos. Ângela abriu uma cerveja e chamou Shayenne para beber.